Lacie, a personagem principal do episódio “Nosedive“, da série britânica de ficção “Black Mirror“ (que explora consequências sociais a partir de desenvolvimentos tecnológicos). A sua vida gira em torno de uma rede social que dita as regras na vida real – quanto maior a pontuação (de zero a cinco, feita com a média das pontuações atribuídas por terceiros), maior o prestígio.
A jovem mulher deve percorrer uma montanha russa – do topo da pirâmide até a sua base, onde atinge o nível dos mais marginalizados. Lacie dá vida a “uma sátira sobre aceitação, sobre a imagem que queremos transmitir de nós mesmos e a forma como nos projetamos nos outros”, explica Charlie Brooker, autor da narrativa e que considera que porque esta história já nem é futuro – é o nosso dia-a-dia.
Na verdade, nem é preciso recorrer a um exemplo tão extremo para mostrar que a conquista de likes se tornou uma parte central da vida da grande maioria das pessoas que vivem no universo digital – e que já representam 57 % dos habitantes do planeta, ou seja, 4.4 biliões de pessoas. De acordo com o GlobalWebIndex, em 2019, cada usuário gastou, em uma média diária, nas redes sociais, o equivalente a um sétimo do tempo que viverá, ou seja. Assim, é irrefutável que as redes sociais são hoje centrais tanto para a relação entre as pessoas, quanto para a relação entre marcas e consumidores.
Esta mudança de paradigma multiplicou oportunidades – a distância ganhou outro sentido e ficou mais curta; passou a ser muito mais simples ter o mundo como mercado para uma marca – mas também fez soar sinais de alerta – o ritmo dos dias acelerou e a dualidade entre a vida real e a que queremos projetar pode acarretar consequências graves, sobretudo para os mais jovens.
A campanha World Record Egg é um bom exemplo da proporção que a competição por likes pode atingir: a premissa desta iniciativa era fazer com que a fotografia de um ovo. A foto conquistou quase 54 milhões de curtidas – o triplo do que precisava para bater o recorde. No dia em que o ovo apareceu, percebeu-se que a campanha pretendia chamar a atenção da comunidade para as doenças mentais, em especial entre jovens que ficaram doentes devido à pressão das redes sociais.
“O impacto social desta medida (Instagram passaria a ocultar a contabilização de likes) é mais importante do que o potencial dano que possa criar aos influenciadores”.
Na última F8, a Facebook Developer Conference, a dona do Instagram anunciou, entre outras novidades, que, em alguns mercados, passaria a ocultar para os seguidores a contabilização de likes. O objetivo é “liderar o combate ao bullying online” e frear a pressão social que a empresa é acusada de gerar. É evidente que, avançando à escala global, esta alteração mudará a forma como todos usamos as redes sociais (se o Instagram mudar, outras redes farão o mesmo) – incluindo aqueles cujo negócio depende delas, como os influenciadores, as marcas e os profissionais de comunicação, particularmente os especialistas em ferramentas de monitoração.
Ana Garcia Martins, autora do Blog A Pipoca Mais Doce aplaude a medida – que, diz ter o potencial de “acabar com a ditadura do like” e a consequente “pressão e ansiedade sociais”, sobretudo com os mais jovens, “que vivem de forma exacerbada a sua presença nas redes sociais”.Os produtores de conteúdos continuarão tendo acesso aos dados estatísticos e podem fornecê-los às marcas com as quais já trabalham ou outras que estejam interessadas. ”
Ana Garcia Martins deixa apenas uma ressalva: “o número de curtidas estando oculto pode fazer com que os seguidores sintam que não vale a pena interagir através desta ferramenta e isso poderá representar uma queda nos números e no nível de interação”.
Também na perspectiva da executiva de comunicação e marca da GALP, Joana Garoupa, a medida é positiva: “Pode dar mais liberdade aos usuários para que publiquem conteúdos que realmente lhes interessam, sem medo de serem julgados”, afirma. Em relação ao impacto que terá nas marcas, a executiva considera que esta medida “vai obrigar as empresas a reverem as estratégias de comunicação para essa plataforma” e a encontrar alternativas “para despertar o interesse da comunidade.”
“As curtidas não podem e não devem ser a única métrica de sucesso”.
Jorge García Perpiñá, diretor de contas da empresa de monitoramento de redes sociais Brandwatch, não só considera esta iniciativa necessária – como afirma que gostaria que este teste também estivesse acontecendo em paralelo no Facebook. Também para este especialista, o like é apenas uma parte da equação. “É importante esperar para avaliar a evolução do comportamento dos usuários na sua interação com as marcas, mas o maior impacto pode decorrer da importância que as marcas darão a esta métrica uma vez que deixe de ser pública”.
“Seja como for, à priori existiriam sempre outros tipos de interações públicas, como comentários, menções, identificações etc.” Como Joana Garoupa, Jorge García Perpiñá acredita que as marcas darão enfoque no essencial – o conteúdo, procurando contar histórias ainda mais interessantes e relevantes para os públicos que pretendem atingir.
A incerteza causada por atualizações como esta do Instagram desperta sempre alguma inquietação entre aqueles que escolhem as redes sociais para comunicar. Pela forma como podem impactar o negócio, seja das marcas, dos influenciadores, das empresas de monitorização ou até das agências de comunicação. Mas também nos dá a oportunidade de redefinir o peso que queremos atribuir a estes canais e de recordar que o fator decisivo em qualquer comunicação continua a ser a autenticidade e a qualidade do conteúdo. O sucesso – nesta como em outras mudanças – será das marcas que escutam, refletem, se antecipam e se adaptam, trabalhando lado a lado com os parceiros certos, especialistas em desenvolver e implementar a estratégia mais adequada a cada momento. O risco não é a mudança; é não encara-la como permanente. O formato tradicional de negócios já não chega para identificar e potenciar as oportunidades. Do ponto de vista de quem usa as redes sociais, resta agora esperar para ver até que ponto esta medida consegue nos distanciar da ‘ditadura’ do like.