A reputação dos criadores de reputação

Que impressão nos causaria comer um peixe estragado na casa de um peixeiro? Pois algo semelhante parece estar ocorrendo no setor da comunicação. Ao menos, há suspeitas de que alguns peixeiros estão servindo peixe em mau estado aos seus clientes, com ou sem o seu consentimento.

Assim é o caso da Cambridge Analytica. A empresa se viu obrigada a fechar quando foi divulgada a notícia de que havia adquirido e utilizado, indevidamente, dados de 50 milhões de usuários do Facebook. O escândalo obrigou o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, a se manifestar dois dias depois do desastre do mercado de ações, ocasião em que reconheceu que a empresa cometeu erros, assumiu a responsabilidade e explicou os passos para reforçar a segurança e garantir a privacidade dos usuários.

Os dados que a Cambridge Analytica utilizou foram obtidos por um professor da Universidade de Cambridge, que acessou atualizações de status, “curtidas” e até mensagens privadas de mais de 15% da população dos EUA e, posteriormente, vendeu os dados para a Cambridge Analytica.

O escândalo da Cambridge Analytica, empresa que também interveio na campanha do Brexit, teve seu mais notório antecedente na falência de outra empresa sediada em Londres, a Bell Pottinger, em setembro do ano passado. Esta agência elaborou e executou uma ‘campanha suja’, que suscitou a animosidade racial na África do Sul, incluindo a criação de notícias falsas, para beneficiar o seu cliente Investimentos Oakbay.

Como resultado do escândalo, Richard Edelman, fundador e presidente da rede de agências de relações públicas que leva seu sobrenome, fez um apelo ao setor de comunicação para firmar um pacto global pela ética. A Aliança Global para Relações Públicas e Gestão da Comunicação, a federação que integra associações de comunicadores e entidades acadêmicas de todo o mundo, respondeu com a convocação de uma cúpula das principais associações internacionais de profissionais e empresas de comunicação, a fim de explorar os componentes de um novo código global de ética para comunicadores. Após seis meses de trabalho, o grupo construiu um guia de 16 princípios de caráter universal, cuja aplicação é considerada essencial para o exercício da comunicação.

A indústria como um todo sofre o ataque dos ventos da dúvida sobre a correção de seu comportamento. Durante anos enfrentamos a má reputação da propaganda. Agora, é a mentira que bate à nossa porta.

José Antonio Llorente, fundador e presidente da consultoria de reputação e assuntos públicos LLORENTE & CUENCA, escreveu recentemente no LinkedIN: “Até o momento temos visto as fake news e a pós-verdade como manifestações da mentira, como se fossem algo alheio à nossa prática profissional, uma dificuldade a mais, que nós, comunicadores, enfrentamos, quase como uma condição do meio ambiente. Não queríamos pensar que por trás daquelas notícias falsas ou falsificadas poderia estar ‘um de nós’”.

Na era da hipertransparência, o setor também está sujeito ao escrutínio público. As novas gerações são muito mais sensíveis do que suas predecessoras a comportamentos responsáveis e, consequentemente, punem duramente desvios assim. São mais seletivas quando se trata de dar sua confiança a uma empresa ou marca. Julgam as empresas não apenas pelo que produzem ou vendem, mas por como as produzem e vendem. Investigam o propósito das organizações e verificam se estas estão ou não alinhadas com sua maneira de entender o mundo. Em resumo, são ativistas mais éticos.

Uma sólida reputação provém do compromisso de gerar confiança. Os 16 princípios éticos que a Aliança Global para Relações Públicas e Gestão de Comunicação anunciou recentemente, junto com a Associação Internacional de Comunicadores de Negócios (IABC), com o apoio de diversas organizações, não mencionam especificamente a confiança, mas esse é, claramente, um objetivo básico da prática ética nas atividades de comunicação.

É a razão de ser dos 16 princípios. O primeiro princípio que listamos é, de fato, a mais poderosa prova de fogo para os negócios. “Trabalhar no interesse público” não é apenas uma declaração de intenções, é uma mudança fundamental na forma como devemos abordar nossas atividades na sociedade. O que isso significa, na prática, é que, se uma empresa enfrenta um dilema entre o interesse próprio e os interesses superiores da sociedade, este último deve prevalecer

O primeiro princípio para administrar nossa própria reputação é ter e respeitar referências éticas sólidas, firmes e assumidas por uma ampla maioria. O guia dos 16 princípios atende a esse requisito. A segunda alavanca da reputação conecta-se novamente com o princípio de “trabalhar pelo interesse público”. Nossa profissão tem um compromisso com os valores humanos que garantem a convivência social. Lembrando a origem etimológica do termo, “comunicação” implica em “senso de comunidade”. E a terceira alavanca é parte da medicina que nós mesmos prescrevemos: um bom storytelling. Temos que demonstrar a relevância da função para o gerenciamento sustentável de todos os tipos de organizações. Se a comunicação não criar valor a partir de valores, isso será inútil.

 

O exemplo da NASA com a sonda Cassini

A Agência Espacial dos Estados Unidos (NASA) informou, no último dia 15 de setembro que a sonda Cassini, após ter esgotado quase que a totalidade do seu combustível, havia entrado às 7:57 (hora local de Washington) na atmosfera de Saturno, onde acabou se desintegrando, tal como estava planejado.

Isso pôs fim à Missão Cassini-Huygens, que ao longo dos últimos vinte anos havia coletado dados tão importantes quanto a possível habitabilidade de duas das luas de Saturno, Encélado e Titã. É precisamente este achado que levou a NASA a tomar a decisão de dar andamento à fase de ‘Grande Final’, com o propósito de destruir a nave antes que seu controle se perdesse da Terra, evitando, assim, uma possível colisão com uma das luas, o que poderia comprometer futuras investigações. Embora a sonda Cassini tenha sido esterilizada antes de ser enviada ao espaço, os pesquisadores não descartaram a possibilidade de que os microrganismos terrestres tivessem sobrevivido à descontaminação.

Ou seja, não foi uma decisão operacional que precipitou o fim da nave, que poderia continuar vagando pela galáxia, mas a ética.

Este é um claro exemplo de que as decisões mais difíceis que as organizações devem tomar, sejam empresas ou instituições, movem-se no território da ética. E os comunicadores devem estar lá para aconselhar sobre as consequências que muitas decisões empresariais têm, especialmente quando podem ter um impacto na sociedade da qual fazem parte. Devemos agir como um Grilo Falante, que traz para a organização as preocupações dos grupos de interesse, um dos quais é a própria sociedade.

Autores

José Manuel Velasco
Jean Valin
Alex Malouf

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