UNO#30: A (R)evolução do cliente

Até pouco tempo atrás, as análises sobre as redes sociais costumavam destacar, principalmente, seu imediatismo. Elas diziam que a digitalização permite contar até o mínimo detalhe das coisas em tempo real, e que isso nos tornaria diferentes. Mas esse fenômeno não é novidade. Por exemplo, Cícero demorou um pouco mais de um mês e quatro Catilinárias para acabar com o rival político mais estudado nas escolas de todos os tempos. De forma que a tecnologia agora pode ser um mês mais rápida que na época do senatus consultum, mas o conteúdo, provavelmente, continuará sendo o mesmo. O que mudou – e de forma radical – foi o ponto de vista. Agora, as redes sociais permitem que cada cidadão (e cliente) se transforme em Cícero e manifeste quantas vezes quiser seu próprio “quosque tandem abutere“. Vocês podem ter certeza de que a verdadeira revolução das comunicações será essa. Na verdade, já está sendo.

Na LLORENTE & CUENCA, ficamos algum tempo e trinta números da UNO refletindo sobre as mudanças profundas na área de comunicação, seja de caráter político, corporativo ou reputacional. Estamos convencidos de que o empoderamento que a digitalização oferece aos cidadãos será um dos seus desafios mais transcendentais. Quando a UNO iniciou sua jornada, lá por janeiro de 2011, esse ativismo social caminava a passos lentos. Naquela época, existia – há sete anos – uma absoluta perplexidade pela magnitude da crise econômica, um desencanto revoltado pela miopia do discurso político e um descontentamento cada vez mais interiorizado e passional contra as instituições. Como se isso fosse pouco, a sombra da corrupção começava a ser projetada e a borrar e dispersar praticamente todos os seus contornos. Nesse sentido, é importante destacar esse cenário quase fundacional, posto que grande parte da evolução comunicativa deste momento nasceu e se desenvolveu a partir desse terreno baldio desolador.

Não é por acaso que o primeiro exemplar da UNO teve como lema A informação impressa: sobre a crise dos jornais; ou que este trigésimo número, sete anos mais tarde, proponha a (R)evolução do cliente. Entre um extremo e outro desse fio condutor, a transformação digital mudou os usos e costumes do fato informativo. A intermediação jornalística continua sendo útil e necessária para estabelecer a agenda, mas a opinião, a capacidade de influência e a essência do debate social agora são desenvolvidas em qualquer lugar e por qualquer pessoa, sem principio, nem fim, em um ‘continuum’ no qual se opina sobre tudo, e no qual os assuntos também perdem a validade e são esquecidos com a mesma rapidez.

Esse debate permanente impulsionou o auge do ativismo social. Qualquer opinião adversa dirigida a uma empresa em uma rede social pode ser maximizada e se transformar em uma crise reputacional de forma quase imediata. Se não há distâncias comunicativas e a conversa nunca é encerrada, então, as empresas devem se incorporar a esse diálogo constante com a mesma naturalidade. Elas têm que expor seus valores, reconhecer erros, envolver e fidelizar seus clientes. Elas estão focadas em fazer parte de um cenário muito mais participativo, um verdadeiro caleidoscópio em que ameaças e oportunidades nunca param de girar. Há uma mudança de perspectiva generalizada, tanto das empresas em relação aos seus clientes, quanto dos consultores de comunicação em relação às suas empresas clientes. Na maioria das vezes, o relato, o diálogo e o debate medem o sucesso e o fracasso de qualquer ideia ou projeto corporativo.

Cabe especificar que, quase sempre, as próprias empresas tomaram a iniciativa desse processo em um compromisso cada vez mais decidido para com a transparência, a boa administração corporativa e a responsabilidade social. Lá pelos anos noventa, conseguir a faixa de preço de uma saída à Bolsa era praticamente impossível. Todos se lembram dos casos de ‘mala praxis’ sofridos no início da crise. Desde então, os reguladores e as próprias empresas reverteram essa realidade. A Comissão Nacional do Mercado de Valores obriga a comunicação nos mínimos detalhes do que tem ou possa ter influência nos mercados. Qualquer material de saída à Bolsa inclui toda a informação real e potencial de cada empresa: desde salários de conselheiros e diretores até dividendos, políticas de remuneração, acionistas minoritários ou possíveis falências e cenários de risco, mesmo os poucos prováveis. Nada escapa ao escrutínio do regulador e dos mercados, e cada detalhe e novidade são conhecidos quase instantaneamente.

Na verdade, essa superabundância e hipertransparência informativa está se transformando em outro problema até agora inédito. Há tanto excesso informativo que hierarquizar a transcendência da informação nem sempre é fácil. A opinião e a capacidade de ser influenciado por um fato passaram a ser algo volátil, se o que se busca são processos muito mais arbitrários e emocionais. Nas redes, há certa tendência a seguir quem compartilha opiniões ou representações conosco, em um processo de banalização e polarização que vai aparando as arestas e nuances do diálogo social. Fala-se muito da mistificação ou pós-verdade, essa propensão de acreditar naqueles que têm a mesma opinião que nós, inclusive quando os fatos comprovam o contrário. Além disso, agora começa a se estender um tipo de pós-verdade de segundo grau, quando até os fatos reais e suas consequências chegam a ser considerados um mero artifício ou uma farsa.

É provável que a perda de influência social da imprensa tenha a ver com esse deterioro da análise política e social. De fato, parece que os próprios jornais começam a se ver afetados pela mesma polarização de que sofre a sociedade à qual se dirigem. Na primeira revista UNO, José Antonio Zarzalejos advertiu que a informação poderia se transformar em uma commodity, apta a ser digerida de forma acrítica, sem contextualização, fontes reconhecíveis, nem prospecção de consequências. Sete anos depois, parece claro que tal ameaça continua latente, embora ao mesmo tempo, o jornalismo passou a ser mais necessário do que nunca, já que continua sendo a fonte mais confiável para uma aproximação crítica, racional e humanista à realidade.

No entanto, ativistas sociais, clientes, consumidores, imprensa, empresas, governos e reguladores estão muito mais interconectados entre si, e estão mais interdependentes do que nunca. Há uma extraordinária oportunidade de colaboração e diálogo entre todos, capaz de amplificar e enriquecer a participação, o debate, o diálogo e a governança compartilhada. Essa é a desejável (R)evolução do cliente que serve como lema desta publicação. Também esse era o sentido da distante controvérsia entre Cícero e Catilina. Se nós a reduzíssemos agora a uma simples competição entre os favoritos e as curtidas conseguidas por cada um nas redes sociais, simplesmente estaríamos abusando uma vez mais da paciência dos romanos e, por extensão, da nossa também.

Autores

José Antonio Llorente

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