TRÊS COISAS QUE NÃO SERÃO IGUAIS APÓS A APLICAÇÃO DO ARTIGO 155

Supondo que as eleições catalãs, marcadas para o próximo dia 21 de dezembro, ajudem a restabelecer uma coexistência democrática na Catalunha dentro da legalidade espanhola, o que ocorreu nestes últimos meses e todo o caminho percorrido até aqui – desde, pelo menos, a última década –, não permite prever que após as águas retomarem seus cursos tudo retornará ao ponto onde estava… Quando retomarão? Em 2004, 2006, 2010, antes disso?

Sem dúvida, mudanças substanciais foram produzidas nas atitudes, comportamentos, visões e formas de relacionamento de um grande número de pessoas e agentes econômicos, sociais e políticos para garantir que poucas coisas voltarão a ser como antes. Na Catalunha e também na Espanha. É inclusive possível que o que ocorreu se transforme em uma espécie de vacina contra o movimento de independência da Catalunha, como uma falsa solução para os problemas legítimos, pleiteados há anos pela chamada “questão catalã”, que deve encontrar uma solução dentro do escopo da negociação política e das reformas pactuadas entre todos os partidos.

Neste sucinto relatório, pretendo apontar três questões fundamentais que possivelmente não voltarão a ser como eram antes. Não estou dizendo que estes sejam os únicos aspectos. Mas, sem dúvida, são os mais importantes.

1. A IDEIA DE ESPANHA

A declaração de “independência” da Catalunha, por parte de seu Parlamento, e a posterior aplicação do artigo 155 da nossa Constituição para fazer com que a situação retome a legalidade constitucional evidenciam que, à parte dos debates sobre outros temas, nem todos os espanhóis pensam igual sobre o que é a Espanha. Este assunto em torno da identidade, que tem gravitado fortemente sobre nossa história nos últimos duzentos anos, encontrou um encaixe em nossa Constituição de 1978, baseado nos três elementos a seguir:

  • A Espanha é uma nação com soberania única, que reside no conjunto do povo espanhol.
  • A Espanha é uma nação composta por, pelo menos, três realidades distintas, como são as “nacionalidades e regiões”, às quais se adicionam um novo conceito, como é o caso das “nacionalidades históricas”.
  • A Espanha é uma nação única, mas complexa, que se organiza, funcionalmente, por meio de um Estado multinível: as comunidades autônomas, que formam parte do Estado.

Uma nação composta, uma soberania única, um estado compartilhado. Essa é a solução pactuada e oferecida pela Constituição de 1978 para esta questão estrutural, em meio à rejeição do PNV, por um lado, e da Aliança Popular, por outro.

Nos últimos anos, no entanto, como resultado dos diversos avatares sobre os quais não vamos nos ater aqui, esta definição constitucional foi abertamente questionada pelo País Basco (Plano Ibarretxe) e pela Catalunha (primeiro, um novo Estatuto e depois, a independência), reivindicando um reconhecimento de ambas realidades, como “nação” e não apenas mais como “nacionalidades históricas”.

Nos dois casos, tal reivindicação não se reduziu apenas a uma questão nominalista que afeta o conceito de Espanha como uma nação composta, mas ao fato de que este dito reconhecimento levava a um questionamento claro da “soberania única”, cunhada na Constituição. Reconhecer a Catalunha e o País Basco como “nações”, ao invés de “nacionalidades históricas”, traz como consequência reconhecer a existência de uma certa soberania “basca” e “catalã”, ou seja, a romper o princípio constitucional da “soberania única”.

Esta questão, que encontrou diferentes soluções tanto no caso do País Basco (derrota do Plano Ibarretxe no Parlamento da nação espanhola e a aceitação do resultado pelas autoridades bascas) como da Catalunha (constatação, no Preâmbulo do novo Estatuto, sem valor legal, de que o Parlamento da Catalunha considerava formava uma nação) tem um efeito colateral chave para toda a Espanha e vai muito além do existencialismo nominalista e identitário: o temor fundamentado no fato de que o reconhecimento de algumas partes do território espanhol como “nação”, ao invés de “nacionalidades”, históricas ou não, traga consigo a concessão de privilégios que são negados a outras partes do território do país que não têm reconhecidas essa denominação. Com isso, alteraríamos outro dos princípios constitucionais fundamentais – aquele que diz que o direito à diferença entre os povos da Espanha não deve dar lugar ao reconhecimento de privilégios que colocam em xeque outro princípio essencial: o da igualdade de todos os espanhóis.

Reconhecer a Catalunha e o País Basco como “nações”, ao invés de “nacionalidades históricas”, traz como consequência reconhecer a existência de uma certa soberania “basca” e “catalã”, ou seja, a romper o princípio constitucional da “soberania única”.

Voltaremos a falar de tudo isso novamente se, após a aplicação do artigo 155 e a celebração de eleições autônomas na Catalunha, estas permanecerem em aberto no Congresso e na Comissão da reforma constitucional em funcionamento, no qual há, pelo menos, duas propostas públicas sobre a matéria:

  • A do PSOE, propondo uma mudança que, mantendo o reconhecimento da Espanha como uma nação com uma soberania única, inclua que esta é uma nação composta de “nações, nacionalidades e regiões” (plurinacionalidade).
  • A de outros grupos – e, de acordo com as pesquisas, que responde a mais de 80% dos catalães –, que propõe que se regule a possibilidade de um referendo legal e pactuado para que a Catalunha (e, suponhamos, outros territórios que reúnam as características assinaladas) possa decidir “o seu futuro”, ao estilo de Quebec ou da Escócia, de fato, limitando o princípio de uma “soberania única” ao reconhecer que também pode haver uma soberania catalã ou basca.

É difícil pensar hoje que estas questões não estarão sobre a mesa, especialmente se, tanto a possibilidade de uma reforma constitucional como a possibilidade de uma Lei de Referendo, fizerem parte de uma solução para o que ocorreu na Catalunha, que não apenas se limite a combater os efeitos, mas a resolver as causas que nos levou à dramática situação de desencontros e enfrentamentos vividos neste momento.

2. O ESTADO AUTÔNOMO

A Constituição de 1978 estabeleceu que a Espanha era constituída por um Estado “autônomo”. Mas, como não era possível prever a evolução detalhada que esse reconhecimento teria, esta se limitou a abrir portas, possibilidades, caminhos e procedimentos. Longe de fechar um modelo, estabeleceu um caminho para o mesmo, definindo um papel preponderante para o Tribunal Constitucional em caso de conflitos entre as diferentes partes na qual o Estado se organizava e dando por certa a existência de uma “lealdade constitucional” que, em pouco tempo, refletiu-se em um conjunto de grandes acordos entre o PP e o PSOE para desenvolver a Espanha autônoma como a conhecemos hoje.

Em 2004, após as últimas transferências de saúde e educação às comunidades autônomas que ainda não possuíam ditas competências e após vários anos de experiência na operacionalização do modelo, o Governo da Espanha considerou que havia chegado o momento de aperfeiçoar nosso Estado Autônomo e, aproveitando o fato de a Catalunha ter iniciado uma Comissão para a Reforma Estatutária no seu Parlamento, propôs, entre outras coisas:

  • Reformar a Constituição para fechar o modelo autônomo, com uma referência explícita às comunidades existentes e um refinamento da definição de competências do Governo central.
  • Criar a Conferência dos Presidentes como um órgão “normal” de relações de alto nível entre as diferentes partes que constituem o Estado.
  • Reformar o Senado para cumprir seu mandato de ser a “câmara de representação territorial”.
  • Melhorar a participação das comunidades autônomas (CCAA) nos órgãos comunitários, onde são tomadas decisões sobre suas competências exclusivas.
  • Dar continuidade ao processo, já aberto, das reformas estatutárias naquelas comunidades que a faziam funcionar há mais tempo e que haviam manifestado a necessidade de caminhar em direção ao que chamavam de Estatutos de “segunda geração”.
  • Abordar a evidente disfuncionalidade de um modelo de competência e financiamento, que faz com que as comunidades autônomas tenham autonomia sobre 80% das despesas públicas espanholas, embora seja o governo central quem controla 80% da renda total.

De acordo com o que havia sido tradicional em nosso país até este momento, uma iniciativa reformista dessa importância exigia criar consensos entre os dois grandes partidos nacionais para, a partir de então, ir incorporando o restante dos partidos nacionalistas.

No entanto, nada disso ocorreu e já é história que a reforma do Estatuto da Catalunha se converteu em um dos principais argumentos do feroz confronto entre o PP e o PSOE, a ponto de, ao ter sido aprovada pelo Parlamento da Nação após os ajustes correspondentes em relação ao texto enviado pelo Parlamento da Catalunha e, mesmo depois de terem sido referendados pelos catalães, o PP ter impugnado o resultado já conhecido ante o Tribunal Constitucional.

Todo esse enfrentamento paralisou, também, boa parte do processo necessário de redefinição, inclusive constitucional, do funcionamento do Estado Autônomo. Mas a necessidade de fazê-lo será mais urgente do que nunca, uma vez que superemos o bloqueio da independência. Temos um Estado multinível, que não funciona corretamente em relação a assuntos importantes, como o financiamento. Este pode ser o momento para voltar a revisar todos os ajustes necessários para que o que existe funcione melhor, chamemos como quiser.

De modo concreto, teremos que avançar nestas três linhas de reforma:

  • Delimitar melhor as competências de cada nível administrativo e político, permitindo que o Governo central possa exercer plenamente suas funções constitucionais, uma vez sejam criadas estruturas comuns para gerenciar o que é comum, no âmbito de um federalismo cooperativo. Por exemplo, uma Agência Tributária Federal.
  • Permitir uma maior diversidade de competências entre as comunidades autônomas, no âmbito de uma bilateralidade, que reforce o alto nível de bilateralidade em que nosso sistema atual já se baseia.
  • Incentivar uma maior cooperação horizontal entre as comunidades autônomas, sem que haja a necessidade de ser aprovada pelo Governo central.

3. O RESSURGIR DO QUE NOS UNE

A unidade de ação mantida sem fissuras entre o PP, o PSOE e o C’s na gestão da última etapa do conflito catalão nos permitiu recuperar o fato de que, independente das múltiplas diferenças que os partidos políticos enfrentam em relação a muitas questões, também existem temas comuns que os unem, assuntos sobre os quais podem atuar de maneira conjunta, alcançando um consenso sobre a solução, como uma parte decisória do modelo democrático de convivência, que deve respeitar a diferença, mas também proteger a todos, o que nos une, como, neste caso, a defesa da unidade territorial da Espanha, tal como consta na Constituição.

Os últimos anos estão cheios de exemplos sobre como os partidos políticos colocaram seus interesses eleitorais particulares à frente dos interesses gerais do país, fulminando-os. O confronto em torno do Estatuto da Catalunha pode ser um bom exemplo do que foi dito. Mesmo enfrentando a maior crise econômica sofrida pela Espanha nas últimas décadas, isto não foi motivo suficiente para que estes unissem esforços, apesar de ambos os governos registrarem suas ações dentro do marco que havia sido definido e supervisionado pela União Europeia.

CONCLUSÃO

Se, como consequência do que aconteceu nas últimas semanas, espaços estáveis ​​para colaboração e cooperação entre os partidos se abrirem não em torno daqueles assuntos sobre os quais cada um defende, mas sobre os acordos que podem ser alcançados, se produziria uma mudança substancial na forma de fazer política e governar na Espanha, com resultados muito positivos para os cidadãos. Esta necessidade de colaboração, mantendo os espaços de embate naquilo que é necessário, é especialmente evidente em questões como a reforma da Constituição, mas, também, quando se trata de acordar medidas para combater as mudanças climáticas, melhorar as políticas ativas de emprego ou a formação profissional, assuntos que são “do país”.

Se a política se tornar um instrumento para fazer coisas que melhorem a vida dos cidadãos e isso, em um mundo globalizado, exige amplos acordos em assuntos que vão além de um único governo ou de uma única legislatura, os espaços para o populismo se encerrarão e a democracia representativa sairá fortalecida. Não se trata de que não haja diferenças entre um partido ou outro ou de que todos sejam iguais, mas que sejam capazes de enfrentar suas opções e alternativas, mas, ao invés disso, chegar a acordos sobre questões de interesse geral. Esta é a força que nos permitiu fazer a transição, entrar na Europa e desenvolver a nossa democracia. Essa é a força que devemos e podemos recuperar depois do que ocorreu nas últimas semanas.

AUTOR:

Jordi Sevilla

Jordi Sevilla

Vice-presidente da Área de Contexto Econômico da LLORENTE & CUENCA

Pertence ao Corpo Superior de Técnicos Comerciais e Economistas do Estado, tendo desempenhado importantes cargos na Administração Pública, incluindo o de Chefe do Gabinete do Ministro da Economia e Finanças (1993-1996) e o de Ministro da Administração Pública (2004-2007), onde aprovou a Lei da Administração Eletrônica e o Estatuto Básico do Funcionário Público. Sevilla tem sido porta-voz da Economia no Congresso e Presidente da Comissão de Mudanças Climáticas. Em 2009, tornou-se conselheiro sênior da PwC. Em julho de 2015 foi nomeado chefe da equipe econômica do candidato socialista à Presidência do Governo. Foi professor na Escola de Organização Industrial (EOI) e no Instituto de Empresa (IE). Publicou numerosos livros sobre economia e mantém uma coluna semanal no suplemento Mercados do jornal El Mundo.

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